3ª parte do relato da viagem

Último dia

Último dia da viagem, hora de arrumar tudo e voltar pra casa. Saímos bem cedo pois a Duda tinha que pegar a carona até Lídice. Deixei ela no carro e segui caminhando calmamente pelos 5km de estrada de terra que levavam até o asfalto, pensando em como fico cada vez mais apaixonado por pedalar, por viajar de bike, pensando em como essas experiências mudaram minhas perspectivas de do espaço, do tempo, das relações com as pessoas. Levei 1h pra chegar na rodovia, e nesse meio tempo fiz vários planos para próximas viagens. Estava um dia claro e bonito por lá. Pelo caminho até aqui me disseram mais de uma vez sobre uma suposta serra curta mas bem íngreme que eu pegaria antes de chegar ao centro de Lídice. Cheguei no centro sem passar por qualquer serra, apenas uma ladeira bem curta. Não entendi muito bem, e segui. Não conseguia falar com a Duda pelo celular. Meu telefone já estava funcionando perfeitamente desde que estava perto de Lídice, mas o dela parecia fora de área. Pela hora ela já devia estar em Angra me esperando. No sentido Angra, Lídice é uma descida. Parei num posto pra calibrar o pneu com mais precisão. Nos últimos 85 km, ou talvez mais, esse foi o único posto que passei que deu pra calibrar (cruzei outros dois no caminho, mas ambos sem bomba).

A tão falada descida da Serra D’Água prometia ser uma pedalada muito bonita, com uma incrível vista dos vales da serra e da bacia de Angra, além da passagem pelos 3 túneis de pedra. Na saída de Lídice, porém, o tempo já estava bastante fechado, mas não achei que fosse chover tão cedo. Pelo menos não antes de chegar a Angra.

Continuei descendo, e imaginei que seguiria assim até o final. Mas depois de 1 ou 2 km, começou uma subida considerável, ao mesmo tempo em que começou uma chuva bem chata, e a estrada foi tomada de uma neblina muito forte. O tal visual da natureza exuberante acabou sendo uma paisagem um tanto quanto fantasmagórica: uma chuva fraca mas muito persistente, neblina muito densa que não deixava ver 100 metros a frente, e um frio desgraçado.

A paisagem mais parecida com isso que eu me lembro de ter visto foi a serra catarinense, na viagem Curtiba – Porto Alegre que fiz por lá, de carro, quando fui tocar no sul. Acho esse visual lindo, e tinha muita vontade de pedalar por lá. De certa forma, essa passagem pela Serra D’Água foi um treinamento!

Segui subindo a lentos 9km/h, debaixo de chuva, sabendo que continuar na estrada não era exatamente a coisa mais segura a se fazer. Mas não tinha outra opção, queria terminar a pedalada, e a Duda já estava me esperando em Angra. A velocidade lentíssima dos carros que passavam por mim davam uma idéia de que aquela não era uma estrada segura, ainda mais sob forte chuva e neblina.

Em certo ponto parei pra colocar minhas luzes, traseira e dianteira, pois a neblina era intensa, e apenas o cinto reflectivo não seria suficiente pra continuar. Olhei pra frente e a menos de 100 metros havia uma parede de neblina, da qual saíam carros repentinamente. Aí vi que na minha frente tinha a placa indicando que ali estava o primeiro dos 3 túneis que eu teria que passar.

Esses túneis são antiquíssimos, cravados na pedra da montanha, com chão de paralelepípedo e absolutamente nenhuma iluminação. Pelo menos são todos curtos, não devem chegar a 100 metros de extensão. Acendi as luzes, coloquei o apito na boca, esperei não vir nenhum carro, e me enfiei lá dentro. Um breu completo, não via absolutamente nada do chão totalmente irregular, e tive que pedalar muito devagar, quase parando. Apitei feito um louco pra alertar pra qualquer carro que viesse: tem um ciclista aqui! Cruzei quase todo ele sozinho, mas nos últimos metros entraram dois caminhões vindo no sentido oposto. Vieram bem devagar, e foi tudo tranquilo.

Depois desse primeiro túnel começou a descida pra valer! A partir daí, passei pelo menos 15km sem pedalar nada, usando força apenas nos punhos, para frear a bike. Apesar da chuva, consegui descer a maior parte do caminho numa velocidade razoável, considerando o peso da minha carga, mantendo sempre entre 30 e 35km/h.

Quando o segundo túnel chegou fiquei um pouco assustado, porque ele era uma curva! Não dava pra ver se tinha carro entrando nele, então fui na sorte. Como no outro, apitando feito louco e pedalando muito devagar por causa do chão de pedras. Atravessado esse, segui até o próximo, que foi um pouco mais simples, reto e curto.

A descida da Serra D’Água é alguma coisa tipo as Paineiras, Alto da Boa-Vista, etc. Descida muito íngreme, curvas muito fechadas, sempre sinuosa. A diferença é que é uma rodovia estadual, onde passam caminhões e ônibus de viagem! Isso, somando chuva e neblina, fez da minha descida um passeio um tanto quanto arriscado. Mas valeu muito a pena. É uma estrada linda, e mesmo debaixo do tempo ruim tem um visual muito bacana. Em um trecho há alguns restos de construções bem antigas, provavelmente fazendas, em ruínas. Cenário combinava perfeitamente com o clima absolutamente cinza.

Em algum ponto tinha uma venda na beira da estrada, de doces e caldo de cana. Parei, tomei um caldo delicioso, dos melhores que já tomei na vida, e o cara me serviu um chorinho muito bem servido, que encheu o copo de novo. Tomei dois pelo preço de um. Tinham umas mosquinhas dentro do copo, mas nada demais. Mosca do campo deve ser mais limpa que da cidade.

A descida termina num distrito chamado Serra D’Água, bem pequeno, e de lá a rodovia RJ-155 segue por um campo quase plano, cheio de pastos e gados, numa paisagem bem bacana, até encontrar com a BR-101. Parecia sacanagem do clima, mas assim que cheguei no pé da serra a chuva parou e o tempo ficou um pouco mais claro.

Cheguei tranquilo na BR-101, onde peguei possivelmente o pior trecho da viagem. Estrada ruim, muito movimentada, caminhões passando, asfalto horrível, tempo feio. Eu estava certo de temer essa estrada, e não sei se pedalarei por ela tão cedo. Foi lá inclusive que tomei o único tombo da viagem, mas nada sério. A bike derrapou numa freada numa descida. Asfalto ruim e molhado, bicicleta pesada, deu nisso. Mas foi tranquilo, não cheguei a cair no cão, só a bici mesmo.

Segui pela BR-101 pelos arredores de Angra até chegar no centro da cidade, e fui pra rodoviária, onde a Duda me esperava.

Angra dos Reis é provavelmente um dos lugares mais feios que eu já vi na vida. A bacia e suas ilhotas seriam uma paisagem absurdamente linda, se não fosse a estúpida intervenção humana. Centenas de casas, prédios, resorts, iates e coisas assim, encagalhando a vista do que um dia já deve ter sido um paraíso natural muito bacana.

A pesar de ter feito uma viagem bastante econômica, me dei ao luxo de pagar R$ 5,00 pra tomar um banho na rodoviária. Estava totalmente enlamaçado, e queríamos almoçar antes de embarcar. Por sorte conseguimos um PF ótimo por $ 7,00, do outro lado da rua. Coloquei a bicicleta no ônibus montada com alforges e tudo, na prequiça máxima de tirar tudo, pra depois ter que remontar chegando no Rio. Dormimos a viagem inteira.

Chegando no Rio eu parecia um mendigo, de calça dobrana, chinelo e meia, com uma bicicleta toda cheia de coisas penduradas (inclusive um alforge que quebrou e estava amarrado por cima de uma sacola cheia de coisas molhadas em cima do rack.).

Essa viagem foi alucinante, e valeu cada esforço, câmara furada e gota de chuva. Pras pessoas que me disseram várias vezes “Você é maluco! Vai fazer isso sozinho? Sem ninguém junto?!” ou “Vai subir a serra de bicicleta?! Que coragem?!”, só tenho a dizer que pedalar é sempre bom, sozinho ou acompanhado, e que coragem é passar horas enfiado dentro de um carro só pensando em chegar, e esquecendo o lindo processo que é ir pra algum lugar. Novas viagens virão, pra pontos mais distantes!

3 respostas em “3ª parte do relato da viagem

  1. Animal, Nesto!! Esses tuneis são mó bizarros mesmo, mas toda vez que vou pra Angra e passo por lá, é a parte que me faz sorrir porque é mó bonito, pena que não deu pra tu ver tudo. E porra, a cidade de Angra é muito escrota mesmo, mas tem umas praias muito bonitas cara!

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